Artigo de Opinião no jornal Público.pt
Publicado a 30 de Junho de 2021
Fonte e artigo completo – Público.pt

 

Nos primeiros meses do ano de 2020, surge uma pandemia sem precedentes, a covid-19, afetando toda a economia mundial e europeia. Portugal — cuja economia em fevereiro de 2020 atingiu níveis históricos de crescimento do PIB e particularmente baixos de desemprego — sofre um volte face, resultante, sobretudo, do confinamento e das restrições a que, por razões de saúde pública, fomos sujeitos.

Na sequência destes eventos, sentiu a União Europeia (UE) o imperativo de ajudar, rapidamente, a repor a capacidade produtiva e reanimar a economia, e propôs a iniciativa de colocar ao dispor dos Estados-membros um Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), com vista, justamente, a reabilitar as economias e a saltar por cima do fosso da crise económica. O PRR tem sido apresentado ao país como um enorme empreendimento, que se pagará a si próprio e quase não terá necessidade de recorrer ao Orçamento do Estado. De facto, são 14.000 milhões de euros em subvenções (a fundo perdido) com execução até final de 2026. Montantes muito significativos, nunca antes colocados ao dispor do nosso país, num tão curto período e tão focados ao nível do propósito.

O propósito — recuperar a economia, reforçar a transição climática e digital e dar resiliência às instituições — é promovido e medido pelas entidades europeias, que disponibilizam estas verbas através de metas e “milestones”, e não de execução física ou financeira, o que coloca aos Estados enormes desafios, ao mesmo tempo que lhes atribui uma responsabilidade e exigência — ao nível da execução — num patamar nunca enfrentado. Este instrumento será ainda auditado pelo Tribunal de Contas Europeu (TdCE), além dos mecanismos de controlo e auditoria nacionais.

Entretanto, têm sido suscitadas publicamente muitas dúvidas sobre a boa execução e capacidade de controlo em torno deste desiderato, tendo presente o grande desafio que este representa para o nosso país.

Mais ainda, a possibilidade de uma derrapagem no cumprimento das metas e “milestones” colocará no horizonte uma potencial, imprevista e irreversível responsabilidade financeira imputável ao erário, que carece de uma abordagem reforçada por parte de todos os órgãos de soberania.

Assim, se analisarmos experiências idênticas de grandes desafios para o país como, por exemplo, a Expo 98 ou o Euro 2004, podemos, desde já, evidenciar ser da maior utilidade — quer em termos de potencial de monitorização e acompanhamento, quer em termos de fiscalização e controlo — uma supervisão parlamentar dos recursos públicos envolvidos na implementação do PRR. Na particularidade deste instrumento deverá também ser assegurada a interação entre o Parlamento português e o Parlamento Europeu, em momentos particulares a definir, para assegurar a adequada sintonia no controlo parlamentar nos diferentes níveis de soberania e responsabilidade.

Assim, este tão relevante empreendimento não pode ser visto como mais um tema de entre os muitos e complexos temas associados à gestão da pandemia. Lateralizar esta oportunidade e responsabilidade é um erro político. Por isso mesmo, considero — e tenho-o dito, desde outubro último — que, além de todos os instrumentos que o Governo incorporou e bem no plano, é essencial que a Assembleia da República constitua uma comissão Eventual para a análise, acompanhamento e fiscalização dos recursos públicos e entidades executantes de qualquer natureza e a qualquer título envolvido no cumprimento das metas e “milestones”, definidas no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência. Na minha ótica, esta comissão Eventual reunir-se-á com a periodicidade que considerar adequada, de forma a dar provimento ao seu mandato, mas deverá também reunir-se, pelo menos duas vezes por sessão legislativa, com os homólogos portugueses no Parlamento Europeu que, nessa sede, acompanhem este dossier, e ainda articular-se, de forma direta, com os mecanismos de controlo e auditoria nacionais, acompanhando, naturalmente, a auditoria promovida pelo TdCE.

Deverá também essa comissão Eventual produzir relatórios de progresso regulares, bem como, no final de cada sessão legislativa, produzir relatórios intercalares. Já no final do seu mandato, a comissão Eventual deverá elaborar um relatório da sua atividade, com as devidas conclusões. Esta Comissão Eventual, em minha opinião, terá de funcionar durante todo o período de vigência do PRR, com a possibilidade de prorrogação pelo período necessário até à conclusão dos trabalhos de análise e reporte.

Não assumir esta autonomia como um verdadeiro empreendimento, que representa um previsível ganho acumulado no PIB potencial — que se estima que, após vinte anos, seja mais de cinco vezes superior ao que atingiria sem o PRR —, é estar a apontar para a linha do horizonte, é certo, mas é também não ser capaz de ver mais do que o próprio dedo.